Uma das discussões metafísicas mais antigas diz respeito à existência de universais. "Universal" designa uma categoria que inclui entidades de múltipla realização – ou seja, ao contrário dos seres pertencentes à categoria dos particulares, os universais se manifestam em vários indivíduos distintos, em lugares e instantes distintos. A querela tem início numa constatação pré-filosófica bem simples. Quando falamos sobre coisas particulares – homens, animais, plantas e objetos inanimados tomados individualmente – atribuímos a elas certas propriedades a fim de qualificá-las e classificá-las. Falamos, por exemplo, que este tomate é vermelho, esta blusa é vermelha ou aquele carro é vermelho. Nesse caso, podemos dizer que o tomate, a blusa e o carro coincidem na apresentação de um mesmo atributo – o de ser vermelho. O problema dos universais começa com a seguinte a pergunta: o vermelho é uma única e mesma entidade multiplamente presente em todas essas coisas? Em termos mais gerais: quando vários objetos apresentam um mesmo atributo, deve-se postular a existência desse atributo como algo, de alguma maneira, separada daqueles objetos? Platão achava que sim. Podemos ler num de seus diálogos:
"... há certas ideias das quais as outras coisas participam, e das quais essas coisas derivam seus nomes; as coisas similares, por exemplo, tornam-se similares porque participam da similaridade; e as coisas grandes tornam-se grandes, porque participam da grandeza; e as coisas justas e belas tornam-se justas e belas porque participam da justiça e da beleza[.]"— Platão, Parmênides.[10]
Segundo Platão, o fato de haver um conjunto de coisas nomeáveis e classificáveis pelo mesmo termo deve ser explicado por um fato ainda mais fundamental, isto é, deve ser explicado pela existência de um tipo de entidade que se manifesta multiplamente e pela vigência de uma relação específica entre as coisas particulares e essas entidades – a participação. Vários filósofos acataram a ideia geral de Platão segundo a qual a manifestação de determinado atributo em uma coisa particular está fundamentada numa relação específica entre essa coisa e uma entidade de múltipla realização (tradicionalmente chamada de universal). A relação pode ser expressa em terminologias distintas ("exemplificação", "manifestação", "exibição"), mas a ideia fundamental é a mesma. Uma coisa particular é sólida, por exemplo, porque essa coisa é uma exemplificação da solidez.
Os filósofos que aderem a essa posição quanto aos universais são geralmente chamados de realistas; e a posição que advogam, de realismo. Há dissensões entre os realistas quase tão antigas quanto a própria filosofia. Platão e Aristóteles eram ambos realistas quanto a universais; ambos acreditavam que os predicados que adotamos para qualificar as coisas particulares referem-se a entidades reais – que, ao contrário dos indivíduos, manifestam-se multiplamente. No entanto, Platão também acreditava que os universais eram entidades de existência completamente independente das coisas particulares – existiriam num domínio fora do espaço-tempo. (Na ontologia platônica, os universais coincidem com a categoria dos objetos abstratos ou das entidades cuja existência se dá fora de dimensões espaciotemporais.) Aristóteles, por sua vez, insistiu na crítica a essa noção de absoluta independência dos universais. Para ele, os universais só podem se manifestar nas coisas concretas e particulares. Na terminologia da escolástica, ainda hoje adotada, Platão acreditava que os universais existiam ante res (previamente aos objetos particulares), enquanto Aristóteles acreditava na existência dos universais in rebus (nos objetos particulares).[4]
A tese oposta ao realismo quanto aos universais é tradicionalmente chamada de nominalismo. Para os filósofos nominalistas, a postulação de universais representa uma proliferação desnecessária de entidades, pois, como defendem, o discurso sobre atributos apenas aparentemente faz referência a universais.
As estratégias nominalistas de desfazer a aparência enganosa que nos induz a postular universais podem assumir diferentes orientações. Michael Loux identifica ao menos quatro orientações básicas: o nominalismo austero, o nominalismo metalinguístico, a teoria dos tropos e o ficcionalismo.
Segundo o nominalismo austero as referências a universais, embutidas em nosso discurso sobre a coincidência de atributos, são apenas aparentes. Quando convenientemente tratadas as proposições que expressam concordância em atributo remeteriam apenas a particulares. Em síntese, as referências à coragem, à sabedoria ou à justiça seriam formas mascaradas de se falar de indivíduos carajosos, indivíduos sábios ou indivíduos justos.
Necessidade e contingência[editar | editar código-fonte]
A classe das proposições verdadeiras apresenta uma importante divisão. Há uma subclasse de proposições que poderiam ser falsas, e há uma subclasse de proposições que não podem, de forma alguma, ser falsas. A proposição "Brasília é a capital do Brasil" pertence à primeira subclasse; "2+2=4" é um exemplo da segunda.[4]
Uma separação correspondente pode ser feita na classe das proposições falsas. Há uma subclasse de proposições falsas que poderiam ser verdadeira e outra cujas proposições jamais poderiam ser verdadeiras.[4]
Para os filósofos medievais, o fato de haver essas subclasses tanto no conjunto das proposições verdadeiras como no das proposições falsas revelava dois modos da verdade proposicional: o modo da contingência e o modo da necessidade. Daí o uso do termo "modalidade" para falar de proposições necessariamente verdadeiras, possivelmente falsas etc.[4]
A modalidade de uma proposição é chamada de modalidade de dicto, e envolve a ideia de que a necessidade ou a possibilidade expressa na proposição é um atributo da proposição, não das coisas em si mesmas. O caso paradigmático é o das chamadas proposições analíticas – proposições que são verdadeiras exclusivamente em virtude dos significados de seus termos. A afirmação "Todo o solteiro é não casado" é necessariamente verdadeira, mas essa necessidade é resultante de convenções linguísticas – por definição, solteiros são aqueles que ainda não se casaram.
A modalidade de dicto é assunto, sobretudo, da lógica e da filosofia da linguagem. Na metafísica a preocupação predominante está voltada para a chamada modalidade de re – da modalidade das coisas em si mesmas. Na metafísica clássica, por exemplo, as discussões sobre Deus não estão ocupadas em saber se certas proposições envolvendo o conceito de Deus são analiticamente verdadeiras (como seria o caso, talvez, de "Deus é onisciente"), mas em demonstrar a existência de um ser necessário – um ser, em outras palavras, que não poderia não ter existido nem poderia deixar de existir.
A análise de modalidades de re aplica-se igualmente a objetos comuns. Intuitivamente consideramos que um ser humano particular é uma coisa de existência contingente. Se, por exemplo, os pais de uma pessoa concreta não tivessem se conhecido, certamente ela não teria existido. Essa pessoa é um ser contingente. Ora, se é plausível falar de coisas contingentes, também parece plausível falar de seres necessários – uma vez que o conceito de seres necessários é complementar ao de seres contingentes, e, presumivelmente, é um pressuposto desse último. Um ente necessário seria aquele do qual é necessariamente falso afirmar a sua inexistência.
Uma abordagem análoga pode ser dada às propriedades. Um determinado indivíduo, por exemplo, apresenta concretamente a propriedade de falar inglês. Intuitivamente consideramos que, embora factualmente esse indivíduo fale inglês fluentemente, essa é uma propriedade que ele poderia não ter adquirido. Nesse caso, a propriedade de falar inglês é uma propriedade possuída contingentemente ou acidentalmente pelo indivíduo em questão. Assim como no caso das coisas, apresentado acima, se faz sentido falar sobre "ter uma propriedade contingentemente (ou acidentalmente)", também faz sentido falar de "ter uma propriedade necessariamente (ou essencialmente)". A atribuição de uma propriedade essencial varia conforme a orientação filosófica. Numa visão fisicista, por exemplo, um ser humano particular é essencialmente um objeto físico. Por outro lado, numa visão dualista, esse mesmo ser humano concreto é essencialmente um objeto não-físico. No entanto, apesar dessas variações conforme a orientação filosófica, permanece a intuição fundamental de que há propriedades essenciais e, independentemente das abordagens filosóficas, todas elas concordarão com a afirmação de que qualquer ser humano particular terá essencialmente a propriedade de “não ser uma omelete”.
Um dos principais críticos à adoção de conceitos modais no discurso filosófico foi W. V. O. Quine. Sua discussão da modalidade assumia duas teses: por um lado, a modalidade de dicto só pode ser entendida em termos de analiticidade (que, segundo Quine, era uma noção tão problemática quanto a de modalidade); por outro lado, a modalidade de re não pode sequer ser entendida em termos de analiticidade – o que a torna uma noção absolutamente ininteligível.
No entanto, predomina hoje a convicção de que as críticas de Quine foram convenientemente superadas pelos trabalhos, entre outros, de Saul Kripke e Alvin Plantinga. Ambos fazem uso do conceito de mundos possíveis, a fim de elaborar um discurso metafísico coerente sobre a modalidade. A noção de mundos possíveis, elaborada pela primeira vez por Leibniz, ainda no século XVII, permite construir definições para qualquer conceito modal. Com o auxílio desse conceito, podemos caracterizar, por exemplo, uma proposição necessariamente verdadeira como uma proposição que é verdadeira em todos os mundos possíveis; um indivíduo contingente como um indivíduo que não exista em pelo menos um mundo possível. Da mesma forma, podemos dizer que um indivíduo é essencialmente um ser humano se ele tem a propriedade de ser da espécie humana em todos os mundos possíveis em que exista.[4]
Nessa abordagem, portanto, as noções modais apresentam uma conexão estreita com o conceito de mundos possíveis. Uma questão metafisicamente crucial é caracterizar essa conexão. Na metafísica contemporânea, as interpretações desse vínculo entre noções modais e mundos possíveis agruparam-se em duas tendências radicalmente opostas. Numa dessas tendências, cujo expoente é o filósofo David Lewis, o esclarecimento das noções modais é integrado a um projeto deliberadamente nominalista. As noções modais são reduzidas a conceitos não-modais. Também são reduzidas outras noções consideradas problemáticas, como as de proposição e propriedade. Uma propriedade, por exemplo, é caracterizada em termos de objetos particulares, conjuntos e mundos possíveis. No entanto, embora essas reduções de caráter nominalista sejam convenientemente realizadas, o custo dessa proposta é o de admitir que os mundos possíveis são tão reais quanto o nosso mundo atual.
A outra tendência é liderada por Plantinga. Na proposta de Plantinga as noções de mundos possíveis, proposição, estado de coisas, necessidade e possibilidade (entre outras) formam uma rede de conceitos interligados. Não há como reduzir essas noções a um conjunto de termos não-modais. A melhor estratégia a nossa disposição é esclarecer as inter-relações entre tais conceitos de modo a obter maior clareza sobre eles. Segundo Plantinga, portanto, a compreensão dos mundos possíveis exige as noções modais, e a compreensão do que sejam as noções modais exige, por sua vez, o conceito de mundos possíveis. Mas isso não quer dizer que estejamos incorrendo num círculo vicioso. À medida que esclarecemos um conceito modal em termos de mundos possíveis ou que explicitamos as relações entre proposições e mundos possíveis, aumentamos a inteligibilidade desses conceitos.
Ver também[editar | editar código-fonte]
- Filosofia
- Holismo
- Lógica
- Metafilosofia
- Metafísica (Aristóteles)
- Pensamento
- Pragmatismo e Pragmaticismo
- Schopenhauer
Notas e referências
- ↑ REALE, Giovanni. O Saber dos Antigos.São Paulo: Loyola, 2011. p. 57-58
- ↑ Reale & Antiseri, 1990, p. 179.
- ↑ Loux, M. 2006. pp. 2-3.
- ↑ ab c d e f van Inwagen, 2010.
- ↑ ab Loux, 2006, p. 5.
- ↑ ab c d e Loux, 2006, p. 6.
- ↑ ab Loux, 2006, p. 7.
- ↑ Loux, 2006, p. 8.
- ↑ Blackburn, 2003, p. 62.
- ↑ Plato, Parmenides. The Internet Classics Archive.
Bibliografia[editar | editar código-fonte]
- Aristóteles. Metafísica. Porto Alegre: Globo, 1969.
- Blackburn, Simon. Metaphysics, in Bunnin, Nicholas & Tsui-James, E. P. (eds.) The Blackwell companion to philosophy. 2nd ed. London: Blackwell, 2003. ISBN 0-631-21907-2
- Loux, Michael J. Metaphysics: a contemporary introduction. 3rd ed. London: Routledge, 2006. ISBN 9780415401333.
- Reale, Giovanni. Aristóteles-Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002. 3v. ISBN 8834305418.
- Reale, Giovanni & Antiseri, Dario. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 1990. V. 1. ISBN 8505010760.
- van Inwagen, Peter. Metaphysics, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2010 Edition), Edward N. Zalta (ed.)
Ligações externas[editar | editar código-fonte]
- Metaphysics Artigo da Stanford Encyclopedia of Philosophy (em inglês)
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