Há 20 anos, Museu do Mamulengo de Olinda preserva tradição nordestina
Espaço ficou fechado por um mês e reabre nesta sexta com novas peças.
Acervo do local conta com 1.200 bonecos.
Todo nordestino que se preze já desviou de suas andanças para assistir a uma apresentação de mamulengos. Os causos encenados pelos fantoches regionais arrancam risos de crianças e adultos e, por anos, foram uma das principais atrações das festas populares brasileiras. A tradição criada na época da colonização portuguesa, no entanto, vem perdendo forças com o passar do tempo. Com apresentações cada vez mais raras, mestres mamulengueiros tentam preservar a brincadeira no interior de Pernambuco. No litoral do estado, o Museu do Mamulengo de Olinda é o responsável por resguardar a tradição. Fechado há um mês, o museu reabre nesta sexta-feira (19) com novas peças para comemorar 20 anos de existência.
No sobrado de paredes amarelas que ocupa o número 344 da Rua de São Bento, próximo ao Mercado da Ribeira, na parte alta de Olinda, o museu volta a funcionar às 11h. Cerca de 400 mamulengos estão expostos nas salas do prédio, que, por serem pequenas, não comportam as 1.200 peças do acervo ao mesmo tempo. Por isso, são fechadas a cada três meses para dar espaço a novos bonecos e, desta vez, trazem produções inéditas de alguns dos mais importantes mamulengueiros pernambucanos. São bonecos assinados por mestres como Tonho, Zé Lopes, Boca Rica, Saúba e Zé Divina. Eles estavam nas mãos da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) e chegaram a Olinda há poucos meses. No total, o acervo ganhou 500 novas peças, que serão expostas gradativamente.
Os novos itens ficam ao lado de peças já tradicionais em salas temáticas que buscam retratar os assuntos preferidos dos mamulengueiros. Cenas e personagens típicos do cotidiano nordestino são, de longe, o foco da tradição. O cangaço, por exemplo, é presença carimbada no museu, que agora também retrata um casamento do interior e a dança dos caboclinhos. Ainda há uma sala inteiramente dedicada ao Mestre Salustiano. Natural de Aliança, na Zona da Mata Norte, o mestre é conhecido por ser um grande tocador de rabeca, entretanto, também é um exímio mamulengueiro.
“Esta é uma arte feita pelo povo e para o povo. É por isso que existe um conjunto de temas e personagens tradicionais relacionados às classes menos favorecidas”, explica a professora Isabel Concessa, do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ressaltando que “os espetáculos evocam a alma do povo”.
Contudo, nem só de realidade vivem os mamulengueiros. O universo fantástico também costuma mexer com o imaginário dos mestres e dispõe de uma sala própria no museu de Olinda. Em meio a luzes vermelhas que tiram o visitante do cenário regional, representações da morte, vampiros e diabos fazem alusão ao tema.
História
Segundo a professora Isabel Concessa, não há registros oficiais de quando os mamulengos foram criados, mas é certo que eles existem há pelo menos 300 anos. “Não há registro dessas manifestações porque não se preocupavam em arquivar a produção cultural das classes menos favorecidas, já que elas não eram consideradas um segmento social importante”, explica. A teoria mais aceita é que a brincadeira foi trazida para o Brasil no século 16 pelos padres franciscanos, que viram no teatro de bonecos europeu uma forma de ensinar o evangelho de forma didática aos índios. No início, os fantoches eram utilizados em presépios ao final das missas. Com o tempo, caíram no gosto popular, se espalharam e ganharam contornos próprios.
É assim que a história é contada aos visitantes do museu por Mara Ferreira, 53. Desde a fundação do instituto, em 1944, ela trabalha no local. Hoje, é uma das maiores entusiastas dos mamulengos. “Os brasileiros não tinham nenhuma opção de divertimento e adoraram aquilo. Por isso, se interessaram em fazer seus próprios bonecos e levá-los para os engenhos”, conta, lamentando a substituição do teatro de bonecos por outros tipos de entretenimento com o passar do tempo. “É por isso que trabalhamos para guardar a história dos mamulengos. E quando as pessoas vêm aqui ficam loucas, principalmente os turistas”, garante. A história termina com a origem do nome mamulengo. Veio de “mão molenga”, uma referência ao movimento feito pelos artesãos para movimentar os bonecos.
Isabel Concessa ainda lembra que, mesmo inspirado nos fantoches europeus, os mamulengos são uma criação tipicamente nordestina. "É uma forma do teatro de bonecos específica, não se confunde com os fantoches de outros locais. Caracteriza-se principalmente por ser uma produção popular, mas também conta com características próprias de linguagem, encenação, produção e manipulação”, afirma a professora da UFPE. Além da caracterização nordestina, os mamulengos se diferenciam por serem utilizados como uma luva e terem a cabeça e as mãos produzidos com a madeira de uma árvore típica do Nordeste, o mulungu. Os rostos não costumam ganhar muitas cores, reservadas às roupas de chita. “É uma produção simples, mas expressiva”, afirma Concessa.
O museu
O Museu do Mamulengo – Centro de Documentação Espaço Tiridá foi fundado pela Prefeitura de Olinda em parceria com a Fundarpe em dezembro de 1944 como o primeiro museu destinado a mamulengos da América Latina. Inicialmente localizado na Rua do Amparo, foi transferido para o prédio atual, na Rua de São Bento, em 2006. Na nova sede, ganhou mais espaço e atenção. Hoje, com 20 anos de existência, é o museu mais visitado de Olinda. Só em 2013, recebeu quase nove mil visitantes. Cerca de 10% do público são formados por estrangeiros.
Entre as 1.200 peças do acervo, há criações de muitos mamulengueiros tradicionais. As peças mais antigas são do século 19 e, por vezes, os artesãos reminiscentes doam novos bonecos. Todos são catalogadas e, se preciso, restaurados no próprio estabelecimento. “O museu é uma iniciativa pioneira muito importante porque permite que novas gerações conheçam a história dessa forma artística que é típica da cultura nordestina, mas poderia ser perdida se não fosse o cuidado dos pesquisadores”, diz a professora da UFPE Isabel Concessa. Segundo ela, o acervo da instituição é “riquíssimo e de valor inestimável”. Para conhecê-lo, o museu só pede uma contribuição simbólica de R$ 2. O estabelecimento fica aberto das 9h às 17h, de terça a sábado.
Os mamulengueiros remanescentes também agradecem o apoio do museu na preservação dos bonecos. “É uma ferramenta importante para manter vivo o malumengo, uma arte linda que não pode acabar. É um espaço sagrado que faz as pessoas entrarem em contato com esse universo tão rico e poético”, elogia o mestre Tonho, de Bonança, distrito da cidade de Moreno, na Região Metropolitana do Recife. O artesão mantém um ateliê no município, mas reconhece que o interesse pelos bonecos já não é o mesmo. “Uma arte precisa ser comentada, vista e praticada. Caso contrário, as pessoas começam a esquecê-la. E é isso que está acontecendo com o mamulengo”, lamenta.
Tonho, por exemplo, já não consegue mais viver apenas com as vendas de mamulengo. Ele diz que pode fazer até 150 bonecos por mês, mas vende no máximo 30. Cada um custa R$ 20. “Já trabalhei com outras coisas, mas sempre mantive o mamulengo na minha vida porque é uma paixão. Não ganho muito dinheiro, mas tenho um prazer imenso em fazer isso”, confessa.
Reconhecimento
Em busca da valorização desejada por artesãos, admiradores e estudiosos, um grupo de pesquisadores do Nordeste solicitou que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) transformasse o mamulengo em bem cultural imaterial. A professora Isabel Concessa da UFPE é uma das responsáveis pelo pedido, resultado de um estudo de seis anos nos quatro estados que ainda abrigam mamulengueiros tradicionais – Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. “Fizemos um levantamento do acervo, dos instrumentos e dos mamulengueiros. Muita coisa foi filmada e gravada. O fruto desse trabalho foi entregue ao Iphan, que está analisando o pedido”, conta.
Para a professora, o título não é algo impossível e pode até levar ao status de bem cultural da humanidade, já que outras manifestações culturais desse tipo já foram contempladas com a qualificação. O Bunraku, teatro de bonecos típico do Japão, por exemplo, é considerado patrimônio cultural da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). “E o título é justo porque, no mundo inteiro, há poucas situações de teatros de bonecos que vivem até hoje, como os mamulengos”, defende Concessa.
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