sexta-feira, 16 de outubro de 2015

QUEIMA DE ARQUIVO

Queima de arquivo pode ser:
  • Queima de arquivo - execução de uma testemunha importante e que poderia denunciar executores de um delito.
  • Queima de Arquivo - título original de filme estadunidense de 1996.
  • Queima de Arquivo - banda brasileira de rock alternativo.
    Brasília - Há exatos 30 dias, o coronel reformado do Exército, Paulo Malhães, confessou à Comissão Nacional da Verdade (CNV) que torturou, matou e ocultou cadáveres de presos políticos da ditadura civil militar, além de detalhar como funcionava a Casa da Morte de Petrópolis, um centro clandestino de tortura onde pereceram cerca de 20 militantes. Antes, havia admitido à Comissão da Verdade do Rio de Janeiro e à imprensa que havia participado do ocultamento do cadáver do ex-deputado Rubens Paiva, sobre cujo desaparecimento em 1971 a ditadura sempre negou responsabilidade.

    Mas no país que ainda se vale de uma Lei da Anistia fabricada pelos próprios militares, em 1979, para perpetuar a impunidade, saiu ileso de qualquer responsabilidade. Continuou a gozar sua aposentadoria custeada com recursos públicos na sua chácara na zona rural de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, onde foi assassinado na noite desta quinta (24). De acordo com as informações preliminares da Polícia, três homens invadiram a propriedade, amarraram a esposa e o caseiro, asfixiaram o militar e roubaram as armas por ele colecionadas.

    O crime guarda semelhanças com um outro ocorrido em novembro de 2012, quando o também coronel reformado do Exército Júlio Miguel Molinas Dias, foi assassinado na sua casa, em Porto Alegre. Segundo a Polícia, em uma tentativa frustrada de roubos de armas: a vítima também seria uma colecionadora.
     
    Ex-diretor do Doi-Codi do Rio de Janeiro, Molinas guardava no local um termo de apreensão de objetos pessoais e documentos do ex-deputado Rubens Paiva, indício forte nunca antes revelado de que o preso político desaparecera em uma prisão do regime.

    O assassinato de Malhães, descoberto na manhã de hoje, preocupou as autoridades, em especial os membros das comissões da verdade que dependem de depoimentos como o dele para concluir o desafio de contar a história do período autoritário. Coordenador da CNV, Pedro Dalari foi bastante comedido nas palavras ao pedir ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que determinasse que o trabalho de investigação da Polícia carioca fosse acompanhado pela Polícia Federal, dada a possibilidade do crime manter relações com a investigação conduzida pela comissão, que é órgão federal.

    O coordenador da Comissão do RJ, Wadih Damous, entretanto, verbalizou a preocupação que toma conta dos militantes dos direitos humanos do país: o crime pode ter sido uma “queima de arquivo” para prejudicar as investigações em andamento e liquidar de vez com a possibilidade de restauração da verdade e, consequentemente, de uma futura punição para os culpados.

    Brilhante Ustra, outro coronel reformado do Exército que atuou como diretor do Doi-Codi de São Paulo, acumulou responsabilidade por mais de 500 sessões de torturas e continua livre a politicamente atuante, reagiu indignado às suspeitas.
     
    “Acabamos de ouvir na Globo News, ditas pelo repórter, as declarações de Wadih Damous, precipitadamente, sem nenhuma base em que se apoiar, o que já imaginávamos que seria dito pela esquerda: que o assassinato teria que ser muito bem investigado pois seria  uma queima de arquivos”, afirmou em seu blog, A Verdade Sufocada. 

    O ex-torturador também relacionou o crime com o do Coronel Molinas. “Os crimes foram bem parecidos: roubo de armas de um colecionador. Só falta encontrarem documentos comprometedores na casa do assassinado, como encontraram na casa do Cel Molinas, em novembro de 2013”, ironizou, insinuando uma outra hipótese mais palatável à boa imagem dos agentes da ditadura então: a de “acerto de contas”. 
     Vanderlea de Paula Tosta era uma velha conhecida da polícia: comandava uma gangue de meninas que faziam pequenos furtos no Centro de Curitiba, a “turma da Xuxa”. Ela foi baleada em 27 de março de 2010, em casa, na presença de duas garotas. No boletim de ocorrência, consta que os assassinos estariam vestidos com coletes semelhantes aos da Polícia Civil. Quem disse isso? Ninguém jamais terá a resposta. Com o passar do tempo, as testemunhas do crime foram sendo assassinadas uma a uma – no total, três outras pessoas ligadas ao caso morreram desde 2010.
    Essa não é uma situação rara. Ao ler inquéritos relativos a mil assassinatos ocorridos em Curitiba, a reportagem da Gazeta do Povo descobriu pelo menos 50 casos em que pessoas foram mortas depois de ter seu nome arrolado em investigações de outros homicídios. Eram namoradas, vizinhos, amigos. Em alguns casos, elas já haviam dado sua versão sobre o crime. Em outros, não tiveram tempo para isso.
    “O Estado não dá garantias de proteção a testemunhas”, avalia Arthur Trindade Maranhão, coordenador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília. “São frequentes os casos em que testemunhas depõem contra determinada pessoa suspeita e nada acontece [com o suspeito]. E as pessoas depois sofrem as represálias porque as polícias também não têm condições de garantir a segurança delas”, completa.
    O juiz Pedro Sanson Corat, representante paranaense na gestão do Programa de Proteção às Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (Provita), diz que proteger as testemunhas seria uma maneira de acabar com a “Lei do silêncio” que impera em comunidades onde há organizações criminosas. “Temos exemplos de sucesso em que a pessoa, se sentindo protegida, ajudou a desvendar chacinas”, conta.
    Execução
    No caso de Xuxa, a única testemunha que a polícia ouviu oficialmente na delegacia, um vizinho, diz que não viu nada. Uma garota de 14 anos que presenciou o crime, nunca foi ouvida. Tanto ela como a proprietária da casa também morreram – foram mortas com tiros na cabeça, em uma cena típica de execução, em Campo Largo, na Região Metropolitana de Curitiba.
    O filho de Xuxa, Luiz Fernando Tosta Carvalho, conhecia as três vítimas, e até era um dos suspeitos do duplo assassinato. Se poderia esclarecer algo, porém, nunca se saberá: ele foi morto a tiros em maio de 2012. Apesar de seus números de telefone constarem no inquérito de sua mãe, ele nunca foi ouvido pela polícia.
    Outra que morreu sem nunca dar seu depoimento foi a namorada de um jovem de 21 anos morto em 12 de outubro de 2010, no bairro Ganchinho. Única testemunha ocular do crime, ela fugiu depois do assassinato. Os investigadores entraram em contato com familiares da jovem e disseram ter ido várias vezes aos locais onde ela poderia estar. Ela morreu no início de novembro daquele ano.
    Programa de proteção tem vagas ociosas
    Dezoito estados do Brasil, entre eles o Paraná, têm programas para proteger vítimas e testemunhas de crimes, com ajuda financeira mensal, transferência de residência, segurança nos deslocamentos e outros auxílios aos ameaçados. Há também um programa federal para os estados que não têm projetos próprios. De acordo o juiz Pedro Sanson Corat, apesar das limitações financeiras, seria possível incluir mais pessoas no projeto.
    Há 35 vagas destinadas para o Paraná. “Basta que o delegado, o promotor, o juiz, ou a própria testemunha faça a solicitação para iniciar o processo”, explica. Segundo Corat, nenhuma testemunha que entrou no programa morreu até hoje.
    Vulnerabilidade
    As autoridades policiais costumam dizer que a maior parte das testemunhas que acabam assassinadas decorre do fato de estarem envolvidas com o mundo da criminalidade – e não pelo depoimento que prestaram. No entanto, mesmo nessa situação, o Estado tem a obrigação de as proteger. Segundo Corat, isso é importante até mesmo para garantir que a investigação não seja prejudicada.
    Segundo Arthur Trindade Maranhão, da Universidade de Brasília (UnB), o problema é que falhas em alguns destes programas fazem com que eles não tragam impacto às investigações. “Os programas são muito incipientes e não tocam na questão principal. Alguns até propõem um salário baixo para testemunhas e as removem para outra cidade. Só que isso não resolve o problema porque as testemunhas deixam nas suas cidades os seus parentes, que continuam sendo ameaçados”w, diz. Corat, porém, diz que o programa paranaense inclui a remoção da família.
    Design e ilustração: Osvalter Urbinati e Robson Vilalba

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