A SUBJETIVIDADE COMO OBJETO
DA(S) PSICOLOGIA(S)1
Kleber Prado Filho
Simone Martins
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil
RESUMO: Este texto busca traçar uma história da colocação da subjetividade como objeto para as várias psicologias
ao longo do século XX. Este conceito nasce no campo da filosofia do conhecimento migrando no final do século XIX
para a psicanálise, de onde passa para os domínios da psicologia ganhando um tratamento histórico, social e político
no final do século XX, apontando, a partir de então, para uma problematização dos processos de singularização como
foco de estudo das psicologias contemporâneas.
PALAVRAS-CHAVE: subjetividade; singularidade; psicologia; Michel Foucault.
SUBJECTIVITY AS THE OBJECT
OF PSYCHOLOGY(IES)
ABSTRACT: This text intends to trace a history of where subjectivity is placed as the object for many different
psychologies throughout the twentieth century. This concept originates from the field of philosophy of knowledge,
migrating to psychoanalysis near the end of the nineteenth century, from where it moves to the domains of psychology,
gaining a historical, social and political treatment at the end of the twentieth century, from then on, pointing to
an inquiry on the process of singularization as the focus of study for contemporary psychologies.
KEYWORDS: Subjectivity; singularity; psychology; Michel Foucault.
Dizer, simplesmente, que o “homem” é objeto da ciência
psicológica ou das várias psicologias não é suficiente,
porque esta entidade genérica, em princípio, é objeto
comum a todas as ditas “ciências humanas” dedicadas ao
seu estudo. Resta entender como esta disciplina desenha
a partir desta abstração genérica seus sujeitos concretos,
entender como são construídos os objetos neste campo,
além de caracterizar o que singulariza o olhar das psicologias
entre as ciências humanas: este moderno olhar sobre
o “psicológico”.
Numa primeira aproximação, talvez se possa tributar
a especificidade das psicologias a uma suposta “descoberta”
do sujeito psicológico; melhor, ao nascimento deste
sujeito nos domínios do discurso ocidental moderno, científico,
ou à sua emergência como figura correlata deste
discurso, considerando que esta era uma figura inexistente
na cultura ocidental antes do surgimento da psicologia
científica na passagem do século XIX ao XX.
Mas, tratar do nascimento de um sujeito nos domínios
da psicologia implica falar da sua colocação como objeto
para um discurso científico socialmente autorizado a
enunciar verdades a respeito de instâncias psicológicas
que compõem este sujeito: o psiquismo, a cognição, a
“mente”, a consciência, a identidade, o self; mas também,
as percepções, as interpretações, e uma certa dimensão
“intrapsíquica”, das emoções, do desejo, do inconsciente
– o “reino da subjetividade”. Implica, portanto, enunciar
o “psicológico” objetivando tais instâncias: construindo-as
como “realidades psíquicas”, universalizando-as, substancializando-as
e naturalizando-as, ancorando-as nas objetividades
do corpo e da natureza, bem ao estilo do modelo
de ciência da época.
Suspeitando de tais naturalizações deve-se, contemporaneamente,
colocar em questão a sua produção histórica
em jogos de verdade, tomando-as como figuras de um discurso/prática
especializado não apenas no conhecimento
como também em intervenções sobre o “psicológico”.
Em seu livro “A invenção do psicológico”, Figueiredo
(1994) trata da produção histórica desta dimensão de existência
subjetiva ligada aos jogos do conhecimento moderno,
que designa um campo de experiências do sujeito,
apontando que antes do nascimento das psicologias a experiência
psicológica não existia, bem como não existiam a
própria materialidade da “substância psíquica”, a existência
psicológica e a percepção de si mesmo como ente
subjetivo, que dão forma ao campo de experiências do
sujeito moderno, compondo sensações de privacidade e
intimidade que ele vivencia como “reais” e “naturais”.
Ainda, conforme o mesmo autor, alguns acontecimentos
sociais constituem condições históricas para o nascimento
deste sujeito psicológico remetido a uma instância
de subjetividade², correlativamente ao surgimento de um
discurso psicológico na modernidade: a emergência do
humanismo renascentista nas artes e na filosofia dos sé-
culos XIV e XV; a reforma pastoral da Igreja Católica no
século XVI; e o centramento da cultura moderna na figura
do “homem” a partir do século XVII com o Iluminismo,
resultando numa recorrente problematização mo-
Psicologia & Sociedade; 19 (3): 14-19, 2007
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derna do sujeito na filosofia, nas ciências, mas também
na vida cotidiana.
Estes acontecimentos são fundamentais para o nascimento
de um conhecimento psicológico de cunho cientí-
fico justamente porque demonstram uma primazia de
atenção ao sujeito. A reforma protestante, por exemplo,
não deve ser tomada como problema meramente religioso,
mas centralmente social, implicando uma recusa
dos modos de condução pastoral da Igreja Católica e dos
modos de subjetivação e individuação ligados à ética cató-
lica, caracterizando aquilo que Foucault (2002) denomina
“revolta das condutas”, ou, um exercício de liberdade do
sujeito no terreno religioso. Por outro lado, a figura nietzschiana
da “morte de Deus” deve ser encarada não como
o fim do dogma cristão, mas como o fim da hegemonia
do pensamento mágico religioso e surgimento de um pensamento
humano, de uma filosofia e uma ciência centradas
no homem, no sujeito cognoscente. Nesta mesma direção,
o trabalho de Figueiredo e Santi (2002) – “Psicologia:
Uma (nova) introdução” – aponta o surgimento da “subjetividade
privatizada” como campo de experiência histó-
rica, individual e cotidiana na passagem à modernidade.
Tomando o nascimento de um conhecimento psicoló-
gico de caráter científico no final do século XIX pode-se
observar certa “dança de objetos” nos desenvolvimentos
deste campo ao longo do século XX, ligada ao surgimento
de várias psicologias concorrentes entre si, denotando não
uma unidade, nem linearidade, mas sim, diversidade e
divergência de abordagem dos “fenômenos psicológicos”:
1. O “objeto primordial”, quase mítico, senão místico, é
a “mente”; esta abstração idealista, subjetivista, com
fortes influências da concepção cristã de alma como
sinônimo de existência imaterial e do pensamento
dicotômico cartesiano, que bebe da mesma fonte. Ao
longo da primeira metade do século XX este termo
ainda era admitido como objeto científico, mas passa
a ser questionado posteriormente por suas imprecisões
e impregnações metafísicas, perdendo confiabilidade
na segunda metade do período.
2. Outro objeto a surgir é o fragmento psíquico – com
Wundt – unidade do psiquismo, do funcionamento psí-
quico ou do processo psicológico: as capacidades, a
cognição, recusa do animismo cristão, mas confirma-
ção do idealismo. O fragmento psíquico é tributário
da concepção mecanicista de que é possível compreender
o todo desmontando-o, analisando suas partes e
remontando-o, predominante no modelo clássico de
ciência vigente à época.
3. Depois surge o comportamento, inaugurado por Watson
em 1910 e depois recolocado por Skinner com a introdução
da noção de “operante”: exterioridade, mecanicismo,
objetivismo e sujeição estrita ao método
científico. No entanto, apesar de reproduzirem o fragmentarismo
e o mecanicismo da época, o trabalho de
Wundt e o behaviorismo apontam para diferentes dire-
ções: enquanto o primeiro busca fazer um mapeamento
da consciência a partir de uma composição dos processos
psíquicos e das capacidades cognitivas, o segundo
centra sua atenção na relação “estímulo-resposta”
e nos aspectos operantes do comportamento,
recusando os conceitos de consciência e de subjetividade.
4. Emergem as percepções, o campo perceptivo que
configura o campo psicológico, que por sua vez singulariza
o sujeito. Objeto colocado pela gestalt que,
apoiada no método fenomenológico, busca superar o
fragmentarismo e o mecanicismo vigentes, propondo
uma psicologia e um sujeito mais integrados.
5. O próprio corpo surge como objeto para a ciência psicológica
com Reich, também na primeira metade do
século XX, numa tentativa de superar o mentalismo.
Esta perspectiva é retomada e renovada no final do
século, atualizando este esforço no sentido de quebrar
a força da dicotomia cartesiana corpo x mente nos
domínios do discurso psicológico.
6. Os discursos são um tradicional alvo de atenção de
várias psicologias, analisados e interpretados de múltiplas
perspectivas, buscando captar significados atribuídos
a objetos e experiências, além de sentidos psicológicos
subjacentes às falas dos sujeitos.
7. As relações também emergem como objeto para algumas
psicologias, num esforço de superar o individualismo,
o mentalismo e as naturalizações ancoradas na
neurofisiologia e atualizadas pela neurociência dos
anos 1990, buscando fundar tanto o conhecimento
quanto o sujeito psicológicos em concepções materialistas,
sociais e históricas.
Mostra-se aqui toda uma diversidade de jogos operando
no discurso psicológico: fragmentarismo e mecanicismo
x perspectivas mais amplas e integradas; subjetivismo
x objetivismo; mentalismo x materialismo; individualismo
x coletivismo; naturalismo biologicista x perspectivas
sociais e históricas.
Nesta dança de objetos observável ao longo de todo o
século XX pode-se notar ainda um movimento de deslocamento
do biológico para o cultural, do natural para o
histórico, do individual para o coletivo; o olhar torna-se
sempre mais social, histórico e político, desenhando objetos
sociais, centrando foco nas relações, mas também no
material, buscando superar as concepções idealistas, subjetivistas
e individualizantes.
Algumas instâncias mais “integradas” ganham visibilidade
a partir de 1940: a consciência, o comportamento;
mas também a personalidade (como decorrência da emergência
das teorias do desenvolvimento), a individualidade,
Subjetividade é algo que varia de acordo com o julgamento de cada pessoa, é um tema que cada indivíduo poe interpretar da sua maneira, que é subejtivo. Subjetividade diz respeito ao sentimento de cada pessoa, sua opinião sobre determinado assunto.
Subjetividade é algo que muda de acordo com cada pessoa, por exemplo, gosto pessoal, cada um possui o seu, portanto é algo subjetivo. O tema subjetividade varia de acordo com os sentimentos e hábitos de cada um, é uma reação e opinião inidividual, não é passivo de discussão, uma vez que cada um dá valor para uma coisa específica.
A subjetividade é formada através das crenças e valores do indivíduo, com suas experiências e histórias de vida. O tema da subjetividade é bastante debatido e estudado em psicologia, cmo ela se forma, de onde vêm, e etc.Prado Filho, K.; Martins, S. “A subjetividade como objeto da(s) Psicologia(s)”
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a identidade – objeto por excelência da psicologia social
dos anos 1980 – bem como a subjetividade e a singularidade,
problematizadas de uma perspectiva social, histó-
rica e política a partir desta mesma década de 1980.
Em verdade o conceito de subjetividade passa do
campo da psicanálise para os domínios das psicologias
na primeira metade do século passado, mas é somente no
seu final que ele se despe de um sentido naturalizado e
substancializado de interioridade, passando a ser pensado
em termos históricos, sociais e políticos – como produção
de subjetividade – apresentando-se contemporaneamente
como objeto possível para muitas psicologias de cunho
crítico, como alternativa a uma problematização da “identidade”,
exatamente por buscar dar conta das diferenças.
Esta perspectiva histórico-política da subjetividade ganha
destaque neste momento em decorrência do declínio do
conceito de identidade, que se esgota numa exaltação ao
“idêntico”: este movimento de se repetir, de se fazer idêntico
a si mesmo para facilitar a visibilidade social e permitir
a localização e captura pelos poderes. Visibilidade
de duas vias: do sujeito que se repete e se reconhece idêntico
a si mesmo, e que neste movimento se expõe à vista
dos outros, tornando-se identificável e capturável pela lei,
pela norma, pela moral. Questão política esta, portanto,
ligada a práticas de individualização e identificação social
de sujeitos, envolvendo jogos de normalização, formas
de reconhecimento de si e dos outros, além de modos de
subjetivação, que exigem posicionamento crítico e resistência
a uma certa “política das identidades” exercida pelo
Estado contemporâneo.
Uma análise arqueológica do conceito mostra que uma
primeira problematização da subjetividade surge na filosofia
moderna com Kant, que se pergunta sobre as condi-
ções de possibilidade para a produção de verdades sólidas,
objetivas e universais, válidas para todos, se quem produz
conhecimento é sempre um sujeito singular, histórico
e, portanto, falível. A questão da subjetividade surge, portanto,
no contexto filosófico das preocupações epistemológicas
quanto à produção do conhecimento, de forma
negativa: como aquilo que precisa ser neutralizado e superado
para se ter acesso a uma verdade objetiva. Esta
conotação negativa persistiu ao longo de todo o século
XX, enfatizando a contaminação do conhecimento por
ela, mas as epistemologias contemporâneas argumentam
que a subjetividade faz parte do jogo e precisa ser contemplada
na produção do conhecimento, por não se opor
necessariamente ao critério de objetividade. Além da subjetividade,
o poder também tem sido tradicionalmente
apontado como contaminador da neutralidade científica,
porém Foucault, já na década de 1960, critica esta separação
quando liga indissociavelmente em suas análises
saber, poder e subjetividade.
Nasce, também com Kant, a figura do sujeito cognoscente:
aquele que conhece, desvenda e enuncia verdades;
“duplo” da filosofia e da ciência modernas: ao mesmo
tempo sujeito e objeto do conhecimento, núcleo da epistemologia
clássica, que permanece ainda no centro das
epistemologias contemporâneas, de forma revisitada.
Apesar da tradição crítica que liga Nietzsche e Foucault
levantar esta questão ao longo do século XX, ainda não
foi superado esse lugar central do sujeito nos jogos de
produção do conhecimento, onde toda a verdade ainda
remete e retorna a ele. Sujeito cognoscente, transcendental
e universal, porque não é nenhum sujeito concreto em
especial e sim, uma abstração genérica que se refere a uma
posição e não de um indivíduo, um “descobridor genial”.
Após mais de um século o termo migra para o campo
dos conhecimentos “psi” pelas mãos de Freud passando a
designar uma instância de interioridade, constituindo
objeto de estudo científico e campo de experiências do
sujeito. De certa forma, a psicanálise freudiana naturaliza
e essencializa a subjetividade ao considerá-la inerente ao
sujeito, reproduzindo a matriz cristã da interioridade e
fazendo dela um enunciado. Nasce agora, correlativamente
ao discurso psicanalítico, o sujeito – também universal –
do inconsciente e do desejo, remetido à sexualidade posta
como invariante: este é o contexto do debate de Michel
Foucault (1988, 1989, 1990) com a psicanálise na sua
“História da sexualidade”. Mas não é da perspectiva psicanalítica
que está sendo abordada a questão, até porque
uma problematização da subjetividade não é monopólio
nem privilégio da psicanálise, e sua importância arqueológica
aqui apontada refere-se justamente a este ato de
importação do conceito da filosofia para os domínios psi
– pelas mãos de Freud – e não exatamente ao novo significado
a ele atribuído nos domínios da psicanálise.
Conforme afirmado anteriormente, numa perspectiva
mais contemporânea, a subjetividade tomada como objeto
construído pelo conhecimento e também como campo
de experiências do sujeito não implica naturalmente nem
necessariamente interioridade, substância ou permanência.
Tradicionalmente as concepções psicológicas apontam
para um núcleo, um centro da “consciência”, da “personalidade”,
da “identidade”, que pressupõe certa regularidade,
previsibilidade e permanência – quando não, “essência”
e interioridade – o que permite distinguir os indivíduos
uns dos outros. Descentrar a análise da subjetividade deste
eixo habitual do desenvolvimento da personalidade e da
identidade, tomando-a como resultado da dispersão de
forças sociais, implica tratá-la como figura histórica que
não tem centro, permanência, inerência ou substância,
nem qualquer sentido, naturalizante, biológico, genético
ou determinista, e pensá-la em movimento, como virtualidade,
efeito holográfico que existe concretamente ali
onde não há nada de palpável. Vista desta perspectiva tem
menos a ver com uma suposta natureza humana do que
com o instável jogo de forças dos enunciados e dispositivo
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